Editorial

Dicta&Contradicta

“Só muito raramente ficamos satisfeitos conosco mesmos;
tanto mais consolador é ter satisfeito os outros”
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J. W. Goethe, Máximas e Reflexões

Este segundo número da Dicta tem de começar por uma confissão. Precisamos reconhecer que nós (ao menos o velho editor ranzinza) estávamos errados.

Uma publicação que tente tratar a fundo de filosofia, literatura, música e arte – no Brasil?! Sim, pensávamos, deve haver já um público razoável que se interesse de verdade por esses temas – basta ver o número de leitores que os blogs da “nova intelectualidade” brasileira atraem. Mas estão disperso por este imenso país, e mesmo em tempos internéticos não é assim tão fácil chegar a eles. Além do mais, quantos se animarão a comprar uma revista publicada por uns ilustres desconhecidos? Resultado: com sorte, o primeiro número terá quinhentos a mil compradores, e com isso poderemos considerar-nos muito bem pagos do nosso trabalho.

Quando saiu a Dicta n. 1, em junho passado, essa desconfiançazinha encardida começou ceder passagem, primeiro à surpresa, e depois à gratidão. Duzentos e cinqüenta exemplares vendidos no lançamento (mais do que a biografia do Paulo Coelho!)… Segundo lugar de mais vendidos em não-ficção na Livraria Cultura. Menção nos cadernos de Cultura da Folha, do Estado, e do Estado de Minas Gerais… E se alguém nos tivesse dito, por exemplo ainda em maio, que atingiríamos ao menos por uma semana o sexto lugar de vendas de não-ficção no Brasil – segundo o Jornal do Brasil -, nós o teríamos considerado pelo menos, pelo menos, um sonhador desmedido. Resultado real: até outubro, quase dois mil exemplares vendidos – quatro vezes a estimativa conservadora, o dobro da otimista!

Agora é a hora de agradecer. Não é fácil fazê-lo num livro ou numa revista, pois facilmente se cai numa simples enumeração de nomes que o leitor se limita a “pular”, ou então numa espécie de cumprimento ritualístico e frio de um dever. Não queríamos que fosse assim, porque realmente precisamos agradecer. Agradecer a todos os que nos ajudaram na divulgação; são muitos, e desta vez é verdade a frase padrão (“infelizmente não temos aqui espaço suficiente para mencioná-los um por um”), além de que cometeríamos uma injustiça com todos os que nos divulgaram sem os conhecermos. Agradecer igualmente a todos os que compraram – e sobretudo leram – a Dicta; a todos os que nos ajudaram e apoiaram de uma forma ou de outra; e não por último àqueles que, também muitas vezes sem os conhecermos, saíram em nossa defesa diante dos pequenos ataques que houve, esporádicos mas inevitáveis. Afinal, não diz o provérbio popular que “é a inveja que move o mundo”…? Por sinal, comprovamos que o provérbio é só uma meia-verdade: sim, a inveja impele alguns; mas muitos outros continuam a mover-se pela justiça e pela generosidade.

É extremamente animador saber, ou mais exatamente tocar com as mãos, que há tanta gente que quer pensar com mais profundidade no Brasil. De certa forma, a intenção do IFE, ao lançar a Dicta, era justamente entrar em contato, abrir um canal de comunicação com essas pessoas. Animar aqueles que têm algo a dizer, mas não encontram um formato ou um veículo adequado, a enviar-nos os seus ensaios; e estimular a troca de idéias, aqui nestas páginas, no site da revista, ou pessoalmente, entrando em contato conosco.

Porque temos a preocupação de preparar educadores que, no futuro, sejam não tanto “formadores das opiniões (em moda)” como “formadores de cultura” lá onde quer que estejam. Educadores de verdade, que não necessariamente tenham cargos docentes públicos ou privados, mas tenham essa fome de conhecer e transmitir a verdade que caracteriza o educador, em contraste com o mero “repetidor de conhecimentos”. E por isso estamos sempre à procura de pessoas que se animem a estudar junto conosco, a fim de amanhã ajudarem os outros a estudar.

E, já que estamos nessa linha de abertura do coração, queríamos aproveitar o ensejo para corrigir uma omissão. Depois que o primeiro número já estava na gráfica – ou seja, não havia mais possibilidade de alterar nada -, alguém levantou a questão: – “E o Rodolfo?” De fato, havia saído na Dicta o nome de todos os participantes do nosso grupo original de estudo de Filosofia, quer como autores ou tradutores de artigos, quer em funções administrativas. De todos, menos de um. E logo de quem! Porque foi do Rodolfo – Rodolfo Brito – que, em maio de 2007, quando o Bruno Tolentino já estava internado naquele hospital de onde não sairia mais, partiu a sugestão de dar uma configuração mais estável ao grupo de estudo, talvez até de fundar um Instituto, etc. Ou seja, porque ele não quis assumir nenhuma função oficial de mais “visibilidade”, acabamos esquecendo de prestar-lhe a devida homenagem. O que fazemos questão de retificar agora.

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Apresentemos rapidamente este número. A entrevista com o maestro Roberto Minczuk trata sobretudo de música, mas toca uma série de outros temas de importância vital para qualquer leitor e qualquer artista: a responsabilidade social do artista, vista de uma maneira que está longe dos padrões costumeiros; o sentido pessoal que o trabalho do artista – e na verdade qualquer trabalho – pode e deveria ter; o valor da educação e da experiência no contato precoce com a arte… Procuramos usar aqui de uma “técnica” que não era lá muito técnica, e que nos parece um tanto afastada do que se costuma ver nas entrevistas: procuramos que o entrevistado estivesse à vontade e falasse o que bem entendesse. Parecia-nos que o importante era o que ele tinha a dizer, não o entrevistador. Talvez seja por isso que saiu uma conversa muito simples e acessível na forma, mas que toca questões muito profundas. O próprio Roberto considerou-a “a melhor entrevista que já fez”.

O segundo artigo principal, do escritor e jornalista Gilberto Kujawski, analisa de maneira luminosa dois aspectos pouco tratados sobre Machado de Assis; é certamente das melhores coisas que se escreveram por ocasião deste centenário do nosso Bruxo. E o terceiro – a contribuição internacional deste número, do professor italiano Massimo Borghesi -, surgiu de uma palestra dada a partir apenas de algumas notas, que foi transcrita e traduzida por nós e depois retrabalhada pelo autor. A parte de perguntas, ao final, permite “tirar todo o suco” da exposição que antecede, predominantemente analítica, sobretudo quando fala da necessidade de “ideais encarnados” e das “profissões necessariamente vocacionais” – como a de professor -. Aqui, o prof. Borghesi traça praticamente o retrato desses educadores que mencionamos pouco antes.

Há ainda algumas seções novas, que resolvemos criar com a intenção de oferecer mais alguns “pequenos oásis” de leituras amenas dentro da temática geralmente séria e algo solene que os artigos de fundo tendem a abordar. À POESIA de um autor nacional ainda pouco conhecido, acrescentamos uma seção bilíngüe de POESIA TRADUZIDA de um autor internacional ainda pouco publicado; ao CONTO nacional, um segundo CONTO INTERNACIONAL, também inédito no Brasil e, se possível, de autor inédito. E, por fim, uma seção de SÁTIRAS traduzidas de antigos e modernos; embora se trate de um gênero literário menor – porque sempre se dirige homens, tipos ou costumes concretos que logo perdem atualidade -, o bom satirista nunca deixa de ter enorme importância para o seu tempo porque faz os leitores “enxergarem o mundo de ponta-cabeça”, de um ângulo inusitado. Essa era a receita de Chesterton para adquirirmos nada menos que a sanidade mental. É verdade que a sátira descamba facilmente para a crítica amarga; procuraremos, pois, selecionar peças que combinem a perenidade com a leveza.

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Depois de publicada a Dicta n. 1, alguém levantou uma pergunta que poderá servir para esclarecer uma atitude de fundo que nos parece importante. Essa dúvida, bastante razoável, poderia formular-se, de maneira contundente, assim: “Quem são vocês – ou, mais em geral, que autoridade têm um engenheiro, um médico, um advogado ou um juiz – para falar de assuntos de Humanidades que não estudaram na faculdade? E, mais ainda, por que alguns emitem as suas opiniões em nome próprio (‘Penso que…’, ‘Parece-me que’…)?!”

A resposta está em que a Dicta é essencialmente ensaística, é um veículo de difusão de ensaios, e foi pensada para ser exatamente isso. E um ensaio é ou deveria ser, como o próprio nome diz, uma tentativa feita por alguém de explorar um tema com certa profundidade para chegar a determinadas conclusões. Como vêem, tem algo de vago na sua própria essência; não é a demonstração de um teorema, que chega a conclusões necessárias, definitivas e irretorqüíveis – isto é, que não admitem resposta ou complementação. Os teoremas vão para os manuais, onde passarão a integrar a summa do conhecimento definitivamente adquirido (e, por isso mesmo, muitas vezes injustamente esquecido sob uma camada mais ou menos grossa de pó).

O ensaio é conhecimento que ainda se está fazendo. Representa de certa forma a vanguarda do exército da filosofia (no sentido mais amplo possível), que se dedica a reconhecer o terreno, a explorar possibilidades. É constitucionalmente incapaz de esgotar o seu assunto porque percorre sempre uma área relativamente nova; e as Humanidades todas continuam a representar, dois mil e quatrocentos anos depois do seu surgimento, uma imensa região quase inexplorada. Em parte é assim porque estão centradas no homem, ser inesgotável, “complexo de lama e anjo” – no dizer do poeta Francis Thompson -, cujo espírito, segundo Tomás de Aquino, “é de certa forma todas coisas”; e em parte porque todas as ciências, exatas e biológicas e sociais, vão levantando a todo o momento novos ângulos e novas contribuições que precisam ser integrados ao conjunto já existente.

Por sua natureza, portanto, o ensaio apresenta uma opinião: é um conhecimento parcial, com consciência da sua incompletude, que admite contradição, que pode ser discutido, comparado, parcial ou inteiramente refutado, complementado e refundido. Mas é um conhecimento vivo, e até extremamente vivo, em constante evolução. Ora, uma opinião começa sempre por ser pessoal, porque não há dois seres humanos que partam da mesma base; por isso, nada mais é que honestidade pessoal expressá-la em primeira pessoa. Pode ser que o autor, por modéstia, prefira usar uma forma mais “genérica” e esforçar-se por deixar falar apenas o assunto, sem usar o “eu penso”; no entanto, o que diz continua a ser uma opinião.

O que realmente diz se essa opinião merece ser levada em consideração é se é abalizada, se o autor estudou o seu tema (privadamente ou em algum curso) e tem uma base de informação ampla e sólida, e se depois sabe raciocinar bem em cima dessa base. Como sabemos, as Humanidades são o campo “democrático” por excelência, em que todo mundo pode se formar muito amplamente e com grande profundidade pela leitura pessoal acompanhada da troca de idéias e da discussão; e são ao mesmo tempo (perdão se ofendo alguma suscetibilidade) a temática mais refratária aos manuais fechados, “científicos”, encerrados, formatados em pacotes adiabáticos de “matérias” claramente distintas e transmissíveis em “cursos”.

Isto é o que levamos em conta para aceitar um artigo para a Dicta: procuramos não olhar apenas as credenciais externas da pessoa (importantes, muitas vezes), mas sobretudo as credenciais internas do artigo: O autor sabe do que fala? Mostra uma cultura respeitável no tema sobre o qual fala? Defende bem as suas opiniões? Argumenta com clareza? Consegue dizer o que quer dizer?

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E, para terminar, precisamos mais uma vez fazer alguns agradecimentos especiais: desta vez, à artista plástica Maria Bonomi, que tirou uma fatia generosa do seu tempo apertadíssimo para preparar, não simples ilustrações desenhadas para uma publicação, mas gravuras especialmente entalhadas que aludissem ao tema de cada artigo; e ainda por cima quis coroar esse gesto doando os blocos ao IFE – sem receber um único centavo por absolutamente nada disso. E precisamos também mencionar especialmente o Banco Fator, que renovou o seu patrocínio num momento de aperto econômico para todos.

E com isto, leitor, desejamos-lhe boa leitura, e até o número 3.